O cheiro de um torpe personagem
“O Poder é afrodisíaco. O cheiro me dá poder. O Cheiro e o Olho.” Essas são algumas das diversas sentenças proferidas pelo torpe protagonista do sublime O Cheiro do Ralo. Dirigido por Heitor Dhalia e roteirizado por Marçal Aquino, os mesmos do também excelente Nina (2004), o filme é inspirado no livro homônimo do quadrinista Lourenço Mutarelli, conseguindo manter todos os elementos da acidez e do sarcasmo do autor, transpondo para as telas, inclusive, o detalhismo presente nas páginas de O Cheiro do Ralo.
Na história do filme, Lourenço (Selton Mello) é um comerciante de objetos usados que, sem qualquer apego às pessoas, tem sempre como objetivo comprar as mercadorias pelo menor preço possível. Uma pessoa fria e solitária, Lourenço sente um prazer um tanto quanto sádico em explorar seus clientes, normalmente frágeis ante aos problemas financeiros. Assim, o protagonista os explora, testando, muitas vezes, os limites de suas dignidades, como se fossem um catálogo de produtos expostos. Porém, a consciência de Lourenço está no cheiro forte do ralo que se apodera de sua sala, o qual tem medo que as pessoas pensem que é dele. O pouco de humanidade que há em Lourenço está na sua platônica paixão pela Bunda (Paula Braun), uma garçonete sensual e pretensamente ingênua, que representa uma mercadoria a qual não consegue comprar apenas com o dinheiro.
Selton Mello – que está em uma das suas melhores atuações – mostra um paranoico personagem que tem como principal objetivo formar a sua personalidade através da ausência do espelho paterno. Por esse motivo, não consegue apegar-se facilmente a ninguém, e, portanto, apaixona-se pela Bunda. Para ele, nada mais que apenas um objeto de desejo, uma mercadoria a qual almeja apenas tocar, um ícone que fomenta a precipitação de sua frágil identidade. Dessa forma, Lourenço, o detentor do dinheiro, vive uma espécie de paranoia social de consumo torpe, ou seja, os valores que atribui aos produtos são aleatórios, dependendo mais de como o objeto identifica o personagem do que o seu real valor. Dessa forma, para ele, um violino Stradivarius não vale mais do que R$ 112,00.
É nessa rotina que Lourenço atende diversos tipos de clientes – todos com o mesmo objetivo: conseguir dinheiro -, que trazem seus pertences afetivos, pelos quais têm um apreço muito mais forte do que o valor de mercado. E, em sua maioria, decepcionados pela frieza com a qual são recebidos por Lourenço, que pensa o mundo como um território dos mais fortes, dando exemplo disso quando disserta sobre a importância do lixo, uma espécie de necessidade para ocupar aqueles que não querem trabalhar.
Lourenço é o centro do filme, e, como tal, tudo o que se projeta nas telas é resultado de sua perspectiva. Portanto, não é de se estranhar que praticamente todos os personagens de O Cheiro do Ralo não possuam nome. Inclusive sua tão almejada conquista sexual tem um nome impossível de se conhecer, e o espectador a tem apenas como “a Bunda” – o que também acontece com os outros personagens, a Noiva, a Viciada, o Segurança, entre tantas outras alcunhas. Assim, além de criar histórias infundadas sobre seu pai, o personagem se consagra como um solitário. Ele é o retrato de uma vida que se perdeu, pois não queria ser frio, mas segundo seus preceitos, a vida lhe obrigou a pensar desta forma. Porém, Lourenço se diverte com isso, o que o torna, de certa forma, uma pessoa inconveniente.
O personagem e seu trágico final são inevitáveis, portanto, pela forma como são tratadas as negociações. Para Lourenço, todos os bens que ele compra – e isso inclui também as pessoas – estão ali porque o são de direito, enquanto as pessoas o encaram como um usurário. Em uma cena do filme, um personagem que tentava vender uma caneta lhe diz: “me desculpe a minha cara, mas não é ela que eu estou oferecendo, é a caneta!”. A cena reforça os sentimentos pessoais que Lourenço desenvolve nos processos, ressaltando sua saturação social e sua ausência moral. Assim, o protagonista abusa da fragilidade de seus clientes – que precisam do dinheiro – e os trata normalmente com perversidade.
As extravagâncias, a comédia burlesca e o drama constituem um personagem singular, o que permite ao espectador o “sabor” de acompanhar, e ainda criar empatia, com a instabilidade moral e social do protagonista, com seus jogos de poder e sua indisfarçável melancolia. Para tanto, o elenco é perfeito. Não apenas Selton Mello está em uma grande interpretação, como todos os demais atores estão muito bem em cena, como Sílvia Lourenço – de Contra Todos (2004) – que faz a Viciada, e Paula Braun. Essa sintonia de um extenso e bem selecionado elenco é que permitiu que o filme exibisse uma pluralidade de situações, sejam emotivas, engraçadas, anormais ou, apenas, efêmeras, mas que carregam significados diversos para cada espectador.
O Cheiro do Ralo contou com poucos recursos financeiros, mas supera a técnica de grandes produções. A fotografia um pouco granulada do super16, as roupas descombinadas e velhas e os objetos que misturam décadas de consumo formam um universo anacrônico e, às vezes, disléxico. Certamente um recorte particular da vida do personagem Lourenço, o filme é uma excelente crítica ao consumismo pop que se traduz na perda, criação ou superação da identidade, pelo menos a do protagonista.
Informações Básicas
Título: O Cheiro do Ralo
Ano de lançamento: 2006
Diretor: Heitor Dhalia
Elenco Principal: Selton Mello, Paula Braun, Silvia Lourenço, Jonathan Haagensen
Link para o IMDB: https://www.imdb.com/pt/title/tt0489458
